A psicanálise e o cuidado integral
- psicotias
- 4 de abr.
- 3 min de leitura

Vivemos tempos de excesso. Excesso de estímulos, de demandas, de ruídos e de ofertas para preenchermos um vazio que nem sempre sabemos nomear. Entre a fome do corpo e a fome da alma, muitas vezes nos perdemos — e, sem perceber, adoecemos. A clínica psicanalítica, com sua escuta cuidadosa, revela cada vez mais como os modos de vida contemporâneos afetam o sujeito em sua totalidade: mente, corpo, desejo, comportamento.
Aos poucos, vamos percebendo que as ideias ilusórias de que é possível pensar a nossa existência fora da sua integralidade, como quando percebemos as falas que se dirigem apenas à saúde do corpo, das emoções ou da mente como instâncias ajustáveis isoladamente, não são mais compatíveis com a nossa realidade. Por isso, ao falarmos de bem-estar emocional e saúde mental, por exemplo, não podemos esquecer de que tudo isso faz parte do nosso corpo e que ele, enquanto organismo, estabelece inúmeras relações que dependem diretamente não só do que pensamos e sentimos, mas também daquilo que ingerimos e do modo como vivemos.
Nosso corpo fala, mas quantos, se preocupam em “escutar” ou mesmo dar importância a uma parte fundamental dele, como, por exemplo, o nosso intestino? E ele, curiosamente, “fala muito”. A ciência já nomeou esse órgão como “segundo cérebro”, e não à toa: trata-se de uma complexa rede neuronal, o sistema nervoso entérico, que abriga cerca de 100 milhões de neurônios e estabelece uma comunicação direta com o cérebro central. Esse diálogo constante entre intestino e mente interfere no nosso humor, imunidade, sensação de bem-estar e até mesmo em estados mais graves como ansiedade e depressão. A microbiota intestinal, impactada diretamente por aquilo que ingerimos, torna-se um dos protagonistas na regulação emocional.
Mas há um paradoxo silencioso: mesmo com tanta informação, mesmo sabendo o que nos faz bem, por que seguimos escolhendo o que nos intoxica? Quantas vezes ouvimos (ou dizemos) que “merecemos um mimo”, e assim nos entregamos a alimentos ultraprocessados, ao álcool em excesso, ao uso indiscriminado de medicamentos, ou a comportamentos que apenas disfarçam a dor com alívios momentâneos? Chamamos de autocuidado o que, muitas vezes, é uma forma de abandono disfarçado. Como se mimar fosse se calar — calar a angústia, o tédio, o medo, o cansaço.
A compulsão se apresenta, então, como um grito que o sujeito ainda não conseguiu verbalizar. Comer sem fome, consumir sem desejo real, viver conectado a telas sem presença no agora… tudo isso expressa, em alguma medida, um movimento de fuga. Há uma dor, um vazio, uma falta — e tentamos preenchê-la com o que está ao alcance. Mas o que o corpo consome, a alma absorve. E o que se cala com comida ou distrações retorna em forma de sofrimento psíquico, culpa, letargia ou frustração.
Cuidar-se, nesse contexto, é um ato de responsabilidade amorosa consigo mesmo. É diferente de seguir uma dieta da moda ou uma rotina performática de bem-estar. Cuidar-se, de verdade, é escutar o próprio corpo com verdade. É escolher alimentos vivos porque se quer viver com mais vitalidade. É beber água porque se reconhece a sede. É dormir cedo porque o corpo pede descanso, e não porque alguém disse que “faz bem”. Cuidar-se é estar em contato com o que é essencial — e, muitas vezes, isso exige dizer não aos excessos, aos ruídos, às promessas de prazer imediato que custam caro à saúde física e mental.
A ética do cuidado passa por essa reconciliação com o próprio corpo. O corpo como morada, como ponte entre o inconsciente e o mundo. Ele nos sinaliza, nos protege, nos acolhe — e também denuncia, quando estamos ausentes de nós. Cuidar do corpo é também uma forma de elaborar o que não se diz em palavras. É um modo de dizer ao inconsciente: “eu me escuto, eu me respeito, eu me acolho”.
Em tempos de urgência e anestesia, cultivar hábitos saudáveis é um ato revolucionário. Que possamos, então, amar-nos com coragem. Que possamos escolher a vida em sua inteireza — corpo, mente, alma e desejo — como um gesto de presença. Que a escuta, seja ela clínica ou íntima, nos leve sempre de volta para casa: nós mesmos.
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