Um caso bastante comentado nas redes sociais foi o de uma mulher em um voo que expôs ofensivamente a imagem de outra mulher que não quis ceder o seu lugar para uma criança. Segundo os relatos, a criança estaria nevosa por não ter podido sentar próximo a avó, já que o assento estava ocupado pela pessoa exposta no vídeo. Com essas informações parciais, muitos interpretaram o comportamento da criança como birra e, consequentemente, o da mulher que resolveu tomar as dores da situação e agir como aquiescente e reforçador da birra (aínda que a mãe estivesse tentando acalmar a criança, fazendo-a entender a situação). E a polêmica se instalou, ao modo típico das redes, com lados, polarizações, julgamentos, informações sobre direitos do consumidor, direito de imagem, danos morais, gestão do voo pela tripulação, entre outros.
Mas o pedacinho dessa polêmica que nos interessa por aqui é mesmo a birra infantil. Além de nós mesmos termos passado por essa fase, certamente também a vivenciamos em algum momento da nossa convivência com parentes e amigos esse típico comportamento infantil. Em muitos casos, nos deparamos com responsáveis que se mostram impotentes, mas, em outros, encontramos os que acabam por estimular e endossar esse tipo de conduta. Quando isso ocorre podemos assistir verdadeiros absurdos como as exigências para que todo o contexto se altere e as pessoas se mobilizem para que o império da vontade infantil seja satisfeito. Pior, confundem isso equivocadamente com empatia.
Na psicanálise, a birra infantil geralmente começa por volta dos três anos de idade. Nessa fase, a criança começa o seu processo de individuação, ou seja, a dissociar-se dos outros e a querer explorar melhor essa nova autonomia, seja pelo controle das suas funções corporais (como as fezes e a urina), seja pelo controle do ambiente que a cerca. Essa noção do eu em formação também vem acompanhada das primeiras experiências de confronto entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Ou seja, aqui, o desejo da criança conhece os limites impostos pelos seus cuidadores e pelas regras de convivência domésticas e sociais.
A birra, nesse sentido, pode ser uma investida da criança, tentando reafirmar sua autonomia frente essas restrições impostas. Por outro lado, ela pode também representar o inverso, a busca por atenção por parte dos pais, cuidadores ou pessoas próximas ou ainda um sintoma de conflitos infantis internos, geradores da sensação de medo do abandono, ciúmes e insegurança, por exemplo. E, o que fazer para que esse comportamento não se prolongue para todas as demais fases do desenvolvimento dos nossos pequenos?
O primeiro conselho é não se desesperar e evitar reagir passionalmente na mesma proporção da criança. Ou, seja, gritar ou usar de algum tipo de coação física pode piorar ainda mais a situação. Por mais enervante e embaraçosa que fique a situação, é importante reafirmar a autoridade e o controle. Até porque os sentimentos da criança precisam ser considerados também. Pode parecer polêmico, mas validar sentimentos não é a mesma coisa do que validar comportamentos. Mostrar-se compreensivo às angústias e frustrações das crianças é um passo importante, mesmo que ela mesmo, na agitação, não perceba isso.
Ou seja, ao mostrar que o sentimento é validado, mas o comportamento não é aceitável ou justificável, começa-se o necessário (e certamente cansativo) exercício estabelecer limites para a birra. Um ponto importante é não colocar tudo a perder, simplesmente cedendo aos desejos infantis a cada birra. Isso, para a criança, será compreendido como uma forma de recompensa e ela vai compreender muito bem o que fazer quando desejar alguma coisa. A falha nesse ponto pode desencadear situações sociais bastante alarmantes e incômodas, como as que são relatadas no caso da troca de poltronas no voo.
Por fim, é preciso que essas medidas com relação a criação das nossas crianças sejam consistentes. Não se pode mudar as regras do jogo a cada momento e muito menos aquela velha história de que só os pais proíbem, o restante dos parentes e amigos podem fazer as vontades indiscriminadamente. Nessa fase de formação do eu, a ambiguidade é um enorme complicador. E, por mais que às vezes seja desgastante, é preciso investir no caminho do diálogo, buscando a reflexão sobre os comportamentos e concedendo espaços de escolha e autonomia para as crianças. É um bom e necessário começo.
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