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psicotias

Proibir celulares é rachar uma película.



Nem precisamos de muito esforço para notarmos que os aparelhos eletrônicos do mundo smart, sobretudo os celulares, se tornaram parte cibernética dos nossos corpos físicos. Andamos com os nossos aparelhos como se fossem uma extensão de nós mesmos. Repare bem se você não passa a maior parte do seu dia a uma distância de no máximo um metro e meio do seu celular?


Essa relação de dependência também possui camadas. Transformamos os nossos aparelhos em extensões dos nossos próprios cérebros, da nossa organização financeira, profissional, da nossa capacidade de ver, falar, ouvir o mundo e as pessoas. E, como cereja do bolo, as redes sociais e demais aplicativos de entretenimento (como os joguinhos e sites de apostas) vem recheados de algoritmos que ao mesmo tempo nos leem e nos transformam na sua principal mercadoria.


Com isso, desenvolvemos novos transtornos como a nomofobia, que se caracteriza como transtorno de natureza psíquica, mas que converte sintomas para o corpo, como ansiedade, taquicardia, oscilação de humor, agitação, entre outros. Tudo pela possibilidade de ficar sem o aparelho celular, seja pela simples falta de bateria, conexão ou mesmo pela proibição do seu uso.


As consequências do uso abusivo desses sofisticados mecanismos também vêm contribuindo efetivamente para problemas além dos transtornos fóbicos ou de conversão em sintomas físicos. Nota-se um progressivo e cada vez mais amplo declínio cognitivo, sobretudo nas novas gerações, que empilham dificuldades não apenas de compreensão dos conteúdos, como também do saber fazer, já que os recursos como pesquisas em sites de buscas e, mais recentemente, os chatbots e seus motores virtuais de síntese são apropriados e utilizados não como ferramentas poderosas para auxiliar o pensamento humano, mas substituí-lo na composição de trabalhos e estudos.


Desse modo, os alunos vão se tornando cada vez mais tarefeiros, ou seja, o que importa é a realização da atividade para livrar-se dela usando esses recursos automáticos de modo acrítico e acéfalo (ou seja, sem nem sequer se dar ao trabalho de ler e tentar compreender o que uma inteligência generativa gerou).


Em virtude desse fenômeno, vários países, incluindo mais recentemente o Brasil, começaram a elaborar leis para proibir ou disciplinar o uso de dispositivos eletrônicos nas escolas. A princípio, comemora-se. Mas essa história precisa ser melhor contada.


As chamadas “novas tecnologias educacionais” chegaram tardiamente nas redes de ensino, sobretudo a pública. E chegaram quase sempre de modo estabanado. Os computadores começaram a se fazer presentes como totens nas áreas administrativas das escolas com a promessa de integrar e diminuir a burocracia. Na prática, conseguiu transferir a burocracia de suporte. Já para os alunos, os laboratórios de informática começaram a ser montados como um verniz de modernidade.


Porém, quase sempre sem acesso ou contando com uma fraca conexão de rede, sem softwares educacionais, sem professores treinados e convencidos de que deveriam fazer parte desse novo universo e sem quase nenhuma integração à igualmente obsoleta forma de estruturarmos nossos currículos escolares. Assim, esses mesmos laboratórios se tornaram um puxadinho das aulas, servindo para pesquisas simples e trabalhos simplórios usando de modo absolutamente precário, os programas básicos de qualquer pacote operacional.


Era como se o moderno se impusesse por si. Não se percebia uma preocupação em ir aos poucos incorporando esse mundo tecnológico que já estava se consolidando. Na esteira das politicagens e dos modernismos vazios, o mesmo foi acontecendo na febre dos tablets, distribuídos como se fossem amuletos de aprendizagem e não recursos. Outra pedra jogada na água. Assim, os laboratórios de informática foram sendo sucateados, abandonados ou viraram peças tão obsoletas que nem valia mais o uso. O mesmo para os tablets vazios.  E eis que chegam os celulares.


De início os celulares eram muito caros não apenas para a compra como também para manter uma linha e, posteriormente, uma conexão. Mas, com o rápido avanço, tornou-se popular e disseminado. Atualmente, inclusive, é a principal forma de conexão com as redes dos jovens das camadas sociais mais pobres (os jovens mais ricos têm o luxo de usufruir de outros aparelhos smart).


E boom do consumo dos celulares inteligentes, obviamente, seria levado de modo forçado para escolas que não se preocuparam em nenhum momento em discutir uma ética para esse novo mundo que se desenhava. Porém, gerou novas linhas de pesquisa e pencas de pedagogos que passaram a defender o uso dessas tecnologias como recursos de apoio metodológico. Muita coisa boa foi produzida e, como sempre, muitos modismos. Fato é que os defensores dos celulares como recurso pedagógico, mesmo com argumentos legítimos, não têm como admitir que a carroça foi colocada na frente dos bois.


Faltou justamente uma ética desse mundo digital. Por isso, os dispositivos até podem ser usados para pesquisas, joguinhos educativos e tal. Mas isso ficou no “de vez em quando”. O que não se conseguiu conter no restante do tempo foi o uso intensivo e viciante dos aparelhos em quase absolutamente todos os momentos de uma aula e não para fins pedagógicos, mas recreativos. O mesmo pode ser transplantado para o mundo do trabalho e das relações sociais.


O problema das redes e de seus aparelhos, portanto, é paradoxal. Não nos imaginamos mais sem as novas tecnologias e suas traquitanas. Nosso avanço enquanto uma espécie que deseja transcender seu próprio corpo e seu próprio planeta, também depende delas. No entanto, é preciso antes resolver justamente o quanto tudo isso nos desumaniza ou nos faz precários e dependentes. E proibir nas escolas, trabalho ou espaços sociais é só uma paliativo de contenção. E uma hora a contenção vai falhar, se é que funcionará.


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